terça-feira, 7 de agosto de 2012

Os Mitos Africanos no Brasil: Ciência do folclore

A FEIÇÃO AFRONEGRA 




   
Quem entrar em contato com um acalô — akpaô em iorubano, — há de reconhecer nele uma enciclopédia viva: — descreve a história de seu povo e relata, sempre com as mesmas palavras, os mesmos gestos, a mesma voz, a mesma música e os mesmos passos o que lhe foi transmitido por seus maiores e por outros acalôs.

   Nos candomblés, encontram-se desses homens de prodigiosa memória, alguns outrora e hoje quase todos brasileiros, de pequenos criados como se houvessem nascido na África, falando a língua paterna, conhecendo mistérios do Fetichismo, iniciados pela Ogboni, que parece haver perdido muito do que foi, até havidos como equejís-orixás ou grandes veneráveis do culto jeje-iorubano.

   Mais raros agora, os acalôs, antes de chegarem ao supremo governo de sua Religião, passam por diversos estágios ou graus de iniciação como equejís ou sacerdotes dos deuses nagôs: — Obatalá, da pureza e da fecundidade, Xangô, do trovão, da abundância, Ifá, do amor em todas as suas fases, do passado, do presente e dos futuro, Ochanin, Ayê-Chalugá, Axá, da medicina, Odudua, da fecundidade, da terra-mater, Iemanjá, das águas.

   Antes, a iniciação se faz nos mistérios dos deuses menores: — Ogun, dos minerais e da guerra, Dadá, dos vegetais, Okô, da agricultura, Oxoce, dos caçadores,

Okê, das montanhas, Olucun, do mar, Olaxá, dos lagos, Orungan, do ar, Aganju, da terra firme.

   Redundante seria advertir o Folclorista Brasileiro alheio a essa primeira e necessária etapa de conhecimento do acalõ. — (de que tão bem se souberam valer Nina Rodrigues e Arthur Ramos), — que não têm procurado determinar a feição afronegra por nenhuma regra ou por outra dedução mais viva senão a presença de alguns sainetes geralmente inexpressivos ou intraduzíveis, ou de alguns termos bantos ou sudaneses, isolados ou misturados, compreensíveis ou não, que não "autorizam" a "descobrir" origem, fonte ou influência africana.

   O Folclore da África Negra é mais rico entre as "nações" sudanesas do que entre as bantas, isso porque sendo comum e de séculos idos o uso da escrita e da língua acabe no Sudão, — onde muito se espalhou a civilização oriental, — os sudaneses, menos "ingênuos" do que os bantos, enriqueceram muito e sempre mais procuraram enriquecer o seu novelário e o seu rimário com um número considerável de mimeses, de inversões, de extensões, todas difíceis de precisarmos, ora ligando-as a totens e tabus seus e alheios, ora indiferentes a essas ligações em virtude de crenças e dissensões religiosas, de que resultaram a abundância e a variedade de suas peças folclóricas.

   Entre as "nações" bantas, a novelística é mais ligada à natureza, à vida, aos habites e aos costumes afronegros, mais intensamente fecunda de "heróis" que se exibem no alegre, no jocoso, nas chulas brejeiras, na libido, que se vencem uns aos outros, registrando assim épocas da história de seus povos, sem que isso anule, mas excite a invenção, a imaginação e a adaptação muito próprias a todas as raças.



   Nos contos sudaneses, exceto haussás, os "heróis" bantos são geralmente mortos à lança ou a cacete, surrados, postos em fuga, precipitados em abismos ou no fogo, enfim, caracterizados, pela covardia, pela estupidez e por tudo que deprime o moral humano. E isso é, na Bahia, o reflexo da rivalidade que se estabeleceu entre sudaneses, sempre privilegiados pelo senhorio dos lares e dos engenhos, contra os bantos, havidos como piores cozinheiros e trabalhadores.

   A influência sudanesa, maior no Recôncavo Baiano, por terem sido os misteres do culto e dos serviços domésticos entregues a filhos do Sudão, retratou, no quibungo o negro de Angola e lhe deu todos os atributos de pusilanimidade, de infelicidade e de instintos baixos, servindo-se de dois termos ambungos:

   —qui-nbungu, o lobo, alusivo ao ciclópico ou que tem a boca nas costas, e quibungo, cloaca, sentina, latrina, urino, bispote, alusivo ao que carregava, de ruas inteiras, o "balde de despejo" para o mar, indivíduo que, pelos brasileiros, era chamado cabungo, nome que também tinha o balde.

   Assim, os sudaneses entraram a ridicularizar os bantos, especialmente os angoleses, sufocando os seus mitos com outro sudaneses, ou transfundindo-os nos ameríndios, pervertendo uns e outros, mas alguns se conservarem fora da transformação.

   A raça negra que se multiplicava nos engenhos foi expandindo os termos bantos, na maioria integrados na Língua Geral Africana. — (do que não se lembraram os nossos Africanistas), — e, com eles, os contos, de modo que estes, bem ou mal, perduram ao lado dos sudaneses, conservando feições primitivas mais ou menos adulteradas, provavelmente influindo na novelística ameríndia por mimese de personagens, com ou sem sainetes que, em alguns casos, apresentam ao mesmo tempo vocábulos ameríndios, afronegros e portugueses.

   Não estamos de acordo com os que sustentam não fosse considerável, em relação à dos sudaneses, especialmente da Nigéria, a corrente de escravos bantos entrados na Bahia bastaria que se consultassem as "relações" do tráfico negro nos séculos XVII e XVIII existentes nos Arquivos de Marinha e Ultramar, de Lisboa, se, para estar a razão conosco, não bastassem os termos em uso corrente no Recôncavo Baiano, muitos deles em ambundo e quimbundo primitivos e em muito maior cópia do que os sudaneses.

   A influência afronegra exercitou-se, pelo menos desde o século XVIII, na Poesia Popular Baiana. Dos candomblés, e das senzalas saíram chulas que, brasileiras, apresentam ritmo, rima e gramática que os atuais inventores e criadores de modernas "tradições brasileiras " arrepeladas no Rio de Janeiro dizem nunca haver existido.

   Não só a Bahia de dois séculos idos substituiu o peso do classicismo luso — (que se exibia até nas quadras populares e nos festejos em honra aos reinantes e príncipes portugueses), — pela beleza dos rimários que a música e a dança afronegras inspiraram. Pernambuco também: — o nordeste inteiro é a civilização pernambucana que se estendeu das margens do São Francisco aos limites com a antiga Capitania do Maranhão, — a terra do maracatu, onde também o povo preferiu o que o negro fazia ao que o Português lhe dava.





Brasiliana | Os mitos africanos no Brasil: ciência do folclore - Página: 129

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