Por Patrícia Bernardes Sousa
Julho 2018
“Fazer o santo”
é um processo muito concreto e material: não é só uma educação sobre mitos,
cantigas e rezas, é também um habitus corporal do santo. Para tal, a iniciada
deve aprender as técnicas do corpo essenciais para a iniciação, fazer oferendas
e construir altares. É um processo dialético de objetivação e apropriação, no
qual o “santo” é construído, concretizado no altar e no corpo (SANSI, 2009,p.144)
Entendo o huncó como útero e o eni como a placenta. Partindo
deste princípio, renuncio aqui um dos projetos mais desafiadores da minha vida; o
meu antigo pré- projeto de mestrado. Filha de orixá aboró Xangô com
yabá Oyá entendem que a justiça caminha ao meu lado desde sempre. Remontar o
cenário de nascimento de orixá no ori (cabeça) de uma mulher requer cuidados
precisos e, por vezes, desbravadores em sua iniciação.
O ato de sangrar já possui proeminência constante a mulher,
dos seus dias de fertilidade aos seus dias de trazer ao mundo a vida que
guardou por nove meses em seu ventre. Assim também é a chegada da abiã ao huncó.
Apesar
de ser um termo feminino, a subalternidade não deve se fazer presente na
relação entre o sagrado e o corpo feminino. O estado ou condição de subalterna no
processo de iniciação ao sagrado, tem se feito presente, cada vez mais, nas
relações de distorção da hierarquia entre filhxs de orixá e autoridades
espirituais nos Terreiros de Candomblé. A incorporação de atos de subserviência
tem estimulado o silenciamento e a violência física dentro dos templos sagrados
de orixá. Anteriormente utilizada para ações sagradas de nascimento de filhxs
de orixá, a eni (esteira de palha sagrada) tem sido utilizada para atos de
assédio moral e aprisionamento emocional.
A entrada de uma iniciada ao Candomblé é de extrema
peculiaridade quando o assunto é assimilar o abstrato pra se entregar ao
sagrado. Cantigas, hierarquia e novas terminologias, de acordo com a nação que
se encontra, nortearam toda a sua conduta na “família sagrada"
que lhes é apresentada naquele momento. Religião, religar e
restabelecer a relação. (MAUSS E HUBERT, 1981).
O íntimo, anteriormente relacionado aos pudores de outrora,
no convívio diário na sociedade em que a filha de orixá iniciada reside, é
suplantando por atos de entrega total aos cuidados de mães e pais “pequenos” (auxiliares
do sacerdote ou sacerdotisa do Terreiro). Experienciar momentos de total
entrega e devoção ao orixá é requisita, de todos os envolvidos na cerimônia
religiosa, paciência, humildade e confiança para além do entendimento terreno
do real significado de comunhão religiosa entre a matéria e o orixá. Sublimar
este instante é nos desnudar de nós mesmos. Voraz e total confiança da filha de
orixá iniciante e seus, posso dizer, “norteadores espirituais” na iniciação.
Quando
falamos do mito da fragilidade feminina, que justificou historicamente a
proteção paternalista dos homens sobre as mulheres, de que mulheres estamos
falando? Nós, mulheres negras, fazemos parte de um contingente de mulheres,
provavelmente majoritário, que nunca reconheceram em si mesmas esse mito,
porque nunca fomos tratadas como frágeis. Fazemos parte de um contingente de
mulheres que trabalharam durante séculos como escravas nas lavouras ou nas
ruas, como vendedoras, quituteiras, prostitutas... Mulheres que não entenderam
nada quando as feministas disseram que as mulheres deveriam ganhar as ruas e
trabalhar! Fazemos parte de um contingente de mulheres com identidade de
objeto. Ontem, a serviço de frágeis sinhazinhas e de senhores de engenho
tarados. (CARNEIRO, 2011: s/p).
Amparar nas necessidades diárias no huncó é uma das
principais ações de ekedjis, ogans, babalorixás e ialorixás num Terreiro.
Amparo notado, dia após dia, antes, durante e/ou até o fim da jornada desta
filha de orixá.
Segundo Pierre Bourdieu (2010), a dominação simbólica é uma
forma de violência que se dá nas relações de etnia, de gênero, de cultura, de
língua, de religião, dentre outras. Voltar a escrever sobre orixá é algo de
extrema alegria, após anos de aprisionamento emocional. Não preciso nem provar
ou gritar o que digo, pois diversas testemunhas, no céu e na terra, me dão a
satisfação acadêmica e pessoal de retomar a minha caminhada.
Aos 41 anos de jornada nesta Terra, sei que consolei pessoas
e as retirei de abismos pessoais, através de meus textos, pessoas que nada
precisavam de ritos de Candomblé para se curar. Durante seis anos doei ao
sagrado o meu coração através de textos que alimentaram três perfis e um
fanpage.
Em 2017, o dono da justiça se fez presente e me colocou onde
eu jamais acreditaria estar: na paz do colo de Oxalá. Só quem tem orixá é que
entende. Um clichê musical que inspira os que respeitam o sagrado. Mulheres de Candomblé não denunciam
violência financeira, psicológica ou física dentro de seu templo sagrado que
frequentam ou já frequentaram, ao contrário das mulheres católicas e mulheres
evangélicas.Não são registrados dados sobre o assunto para pesquisa
qualitativa ou quantitativa .
Este #JulhodasPretas2018 eu dedico a rainha dos ventos que
muda a minha vida sempre que necessário. Caráter de orixá é diferente do
caráter humano. Eu fiz minha escolha. Adupé Orixá.
Referências:
VERGER, Pierre Fatumbi [1981] (2002) Orixás: deuses
Iorubás na África e no Novo Mundo. Salvador: Corrupio.
SANSI, Roger. “Fazer o
santo”: dom, iniciação e historicidade nas religiões afrobrasileiras. In:
Análise Social, vol. XLIV (1.º), 2009, p. 139-160.
MAUSS, Marcel e HUBERT,
Henri. Ensaio sobre a natureza e a função do sacrifício. In: Ensaios de
Sociologia, São Paulo, Editora Perspectiva, 1981.