escrito por Leonardo Lichote (Jornal O Globo -Rio de Janeiro)
Talento que vem sendo celebrado por colegas (de Pedro Miranda a Diogo Nogueira, de Beth Carvalho a Maria Bethânia), Mariene de Castro abre seu CD "Santo de casa: ao vivo" - o primeiro dela com lançamento nacional (o DVD sai em janeiro) - com versos de Roque Ferreira: "No meio do temporal/ Ninguém é rei/ Mas eu sou." Eles não estão ali por acaso. A cantora conta que quis já nos primeiros segundos do disco, afirmar a personalidade de sua trajetória. Não só pelos versos evocarem forças da natureza sobre couros de tambores - uma boa carta de apresentação de seu trabalho, calcado nas tradições afro-baianas do candomblé e do samba de roda -, mas, sobretudo por eles descreverem, poeticamente, as dificuldades que ela teve para fazer sua música em meio ao temporal de axé e pagode que domina o cenário baiano mais ainda quando estreou, nos anos 90.
- Dois produtores franceses viram meu show no Pelourinho e me levaram para uma série de apresentações na França. Saíram reportagens, críticas positivas, inclusive comparações com Edith Piaf... Quando voltei, foi como começar do zero, com a Bahia respirando axé e pagode, sem espaço para alguém com o meu trabalho. Ouvi: "Você tem que sair da Bahia, ninguém vai consumir isso aqui" - lembra.
No meio do temporal, ela escolheu fincar o pé. Manteve-se fiel à ideia de trabalhar com compositores do interior da Bahia, incorporando referências religiosas e tradições do samba rural. Em 2004, a insistência começou a dar frutos, quando ela ganhou o Prêmio Braskem, que permitiu que lançasse seu primeiro CD, "Abre caminho". No ano seguinte, o disco rendeu a ela o Prêmio TIM de música na categoria Regional. "Santo de casa", o nome do disco, é a resposta a quem dizia que ela não teria futuro na Bahia:
- Santo de casa faz milagre, sim. Foram 1.700 pessoas ao lançamento do disco (que teve uma pequena tiragem lançada de forma independente na Bahia, em maio), num Teatro Castro Alves lotado. Já toquei para 15 mil pessoas, minha música está em rádios de Salvador. Mas tudo foi conquistado no palco. Enquanto só se tocava axé, o palco foi minha rádio.
Aos 31 anos, Mariene não se relaciona muito com artistas baianos de sua geração ("Fiz meu caminho sozinha"). Mas nomes mais velhos a ajudaram a pavimentar sua estrada. O hoje celebrado Roque Ferreira - Roberta Sá e o Trio Madeira Brasil lançaram um CD dedicado à obra dele, Maria Bethânia e Zeca Pagodinho gravam suas canções - é talvez o nome central entre esses parceiros. Em seu primeiro disco, a cantora gravou nove músicas dele. Em "Santo de casa" foram oito.
- Fico feliz por Roque estar sendo reconhecido. No Prêmio da Música Brasileira 2010, foi maravilhoso vê-lo competindo com duas canções e ter ganhado com "Feita na Bahia", na gravação de Bethânia - diz Mariene, que sentiu um sabor especial com a vitória da música. - Roque compôs para mim. Ele diz que sou a maior intérprete dele. Temos uma cumplicidade muito grande. Em "Santo de casa", ele assina o disco (a voz de Roque, numa gravação caseira, está na última música).
No palco, a artista já cantou com Bethânia e Caetano Veloso, próximos dela artisticamente e também por laços familiares - Mariene foi casada e tem um filho com J. Velloso, sobrinho dos irmãos ilustres. A cantora chegou a participar da trilha sonora do filme "Ó paí, ó", organizada pelo baiano. E Bethânia chama a atenção para a personalidade dela na cena local:
- O que distingue a Mariene na música baiana é que ela consegue romper, com talento, boa voz e ótimo repertório, a potência sonora que reina na Bahia: axé music, pagode-axé. Ela parece segura e determinada na sua escolha musical mais para a MPB, e, por conhecê-la de perto, sei da admiração que ela tem pela Ivete Sangalo, que certamente é um bom norte para qualquer cantora.
Não há, porém, parcerias artísticas em vista com Caetano e Bethânia.
- Procuro deixar que as coisas aconteçam naturalmente - diz Mariene. - Dizem que Deus dá risada de quem faz planos.
A cantora reforça a ideia lembrando sua história com Beth Carvalho, de quem ganhou um disco, aos 5 anos, que ouvia sem parar. Anos depois, foi convidada a participar de um CD da cantora, "Beth Carvalho canta o samba da Bahia":
- Quando eu iria imaginar? E como iria imaginar que cantaria com Celia Cruz, como aconteceu no início da minha carreira, na França? Acredito no tempo. É a ciranda da vida que gira.
A filosofia de Mariene tem as mesmas raízes de sua música - o interior da Bahia, de tradições com sabor ancestral. Nascida em família musical, ela convivia com os discos de Dalva de Oliveira, Pixinguinha, Luiz Gonzaga e Dorival Caymmi, enquanto tomava contato com samba de roda, marujada, ciranda. Mais tarde, conheceu D. Edith do Prato, que a ensinou a tocar seu instrumento. O Vozes da Purificação, grupo que acompanhava D. Edith, está no novo disco, assim como Dona Nicinha de Santo Amaro, Rita da Barquinha, as Ganhadeiras de Itapoan e o Grupo Pim ("Crianças que cantam de Villa-Lobos ao samba do Recôncavo").
- Sempre reverenciei minhas raízes. A formação de tambores e cordas que me acompanha, sem teclado, sem guitarra, reflete isso. A Bahia que canto é uma Bahia da qual não se ouve falar desde Carybé, Caymmi, Pierre Verger. Uma Bahia mais elegante, sem vícios, na qual as mulheres sambavam descalças, de saia comprida. O santo dessa casa, do meu disco, é o samba de roda, matriz que respeito e busco trazer com pureza, sem inventar. O atual pagode baiano, o axé, tem essa influência no ritmo, mas perdeu a elegância.
Mariene acaba de encerrar a temporada de shows "Meu cumpadre Ferreira" no Pelourinho, só com canções de Roque. Como atriz, está no longa-metragem "Jardim das folhas sagradas", de Póla Ribeiro, e no curta "Ensolarado", de Ricardo Targino, lançado no Festival de Paulínia. O mesmo diretor convidou-a para protagonizar "Quase samba", a história de uma cantora da Baixada Fluminense. Depois dos temporais, portanto, a previsão para os próximos anos de Mariene é de tempo bom.
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