quarta-feira, 11 de julho de 2018

Justiça no Sagrado – Subalternidade Feminina no Candomblé de Salvador




Por Patrícia Bernardes Sousa
Julho 2018

“Fazer o santo” é um processo muito concreto e material: não é só uma educação sobre mitos, cantigas e rezas, é também um habitus corporal do santo. Para tal, a iniciada deve aprender as técnicas do corpo essenciais para a iniciação, fazer oferendas e construir altares. É um processo dialético de objetivação e apropriação, no qual o “santo” é construído, concretizado no altar e no corpo (SANSI, 2009,p.144)

Entendo o huncó como útero e o eni como a placenta. Partindo deste princípio, renuncio aqui um dos projetos mais desafiadores da minha vida; o meu antigo pré- projeto de mestrado. Filha de orixá aboró  Xangô com yabá Oyá entendem que a justiça caminha ao meu lado desde sempre. Remontar o cenário de nascimento de orixá no ori (cabeça) de uma mulher requer cuidados precisos e, por vezes, desbravadores em sua iniciação.

O ato de sangrar já possui proeminência constante a mulher, dos seus dias de fertilidade aos seus dias de trazer ao mundo a vida que guardou por nove meses em seu ventre. Assim também é a chegada da abiã ao huncó. Apesar de ser um termo feminino, a subalternidade não deve se fazer presente na relação entre o sagrado e o corpo feminino. O estado ou condição de subalterna no processo de iniciação ao sagrado, tem se feito presente, cada vez mais, nas relações de distorção da hierarquia entre filhxs de orixá e autoridades espirituais nos Terreiros de Candomblé. A incorporação de atos de subserviência tem estimulado o silenciamento e a violência física dentro dos templos sagrados de orixá. Anteriormente utilizada para ações sagradas de nascimento de filhxs de orixá, a eni (esteira de palha sagrada) tem sido utilizada para atos de assédio moral e aprisionamento emocional.

A entrada de uma iniciada ao Candomblé é de extrema peculiaridade quando o assunto é assimilar o abstrato pra se entregar ao sagrado. Cantigas, hierarquia e novas terminologias, de acordo com a nação que se encontra, nortearam  toda a sua conduta na “família  sagrada" que lhes é apresentada naquele momento. Religião, religar e restabelecer a relação. (MAUSS E HUBERT, 1981).

O íntimo, anteriormente relacionado aos pudores de outrora, no convívio diário na sociedade em que a filha de orixá iniciada reside, é suplantando por atos de entrega total aos cuidados de mães e pais “pequenos” (auxiliares do sacerdote ou sacerdotisa do Terreiro). Experienciar momentos de total entrega e devoção ao orixá é requisita, de todos os envolvidos na cerimônia religiosa, paciência, humildade e confiança para além do entendimento terreno do real significado de comunhão religiosa entre a matéria e o orixá. Sublimar este instante é nos desnudar de nós mesmos. Voraz e total confiança da filha de orixá iniciante e seus, posso dizer, “norteadores espirituais” na iniciação. 

Quando falamos do mito da fragilidade feminina, que justificou historicamente a proteção paternalista dos homens sobre as mulheres, de que mulheres estamos falando? Nós, mulheres negras, fazemos parte de um contingente de mulheres, provavelmente majoritário, que nunca reconheceram em si mesmas esse mito, porque nunca fomos tratadas como frágeis. Fazemos parte de um contingente de mulheres que trabalharam durante séculos como escravas nas lavouras ou nas ruas, como vendedoras, quituteiras, prostitutas... Mulheres que não entenderam nada quando as feministas disseram que as mulheres deveriam ganhar as ruas e trabalhar! Fazemos parte de um contingente de mulheres com identidade de objeto. Ontem, a serviço de frágeis sinhazinhas e de senhores de engenho tarados. (CARNEIRO, 2011: s/p).

Amparar nas necessidades diárias no huncó é uma das principais ações de ekedjis, ogans, babalorixás e ialorixás num Terreiro. Amparo notado, dia após dia, antes, durante e/ou até o fim da jornada desta filha de orixá.

Segundo Pierre Bourdieu (2010), a dominação simbólica é uma forma de violência que se dá nas relações de etnia, de gênero, de cultura, de língua, de religião, dentre outras. Voltar a escrever sobre orixá é algo de extrema alegria, após anos de aprisionamento emocional. Não preciso nem provar ou gritar o que digo, pois diversas testemunhas, no céu e na terra, me dão a satisfação acadêmica e pessoal de retomar a minha caminhada.

Aos 41 anos de jornada nesta Terra, sei que consolei pessoas e as retirei de abismos pessoais, através de meus textos, pessoas que nada precisavam de ritos de Candomblé para se curar. Durante seis anos doei ao sagrado o meu coração através de textos que alimentaram três perfis e um fanpage.
Em 2017, o dono da justiça se fez presente e me colocou onde eu jamais acreditaria estar: na paz do colo de Oxalá. Só quem tem orixá é que entende. Um clichê musical que inspira os que respeitam o sagrado. Mulheres de Candomblé não denunciam violência financeira, psicológica ou física dentro de seu templo sagrado que frequentam ou já frequentaram, ao contrário das mulheres católicas e mulheres evangélicas.Não são registrados dados sobre o assunto para pesquisa qualitativa ou quantitativa .

Este #JulhodasPretas2018 eu dedico a rainha dos ventos que muda a minha vida sempre que necessário. Caráter de orixá é diferente do caráter humano. Eu fiz minha escolha. Adupé Orixá.

Referências:
VERGER, Pierre Fatumbi [1981] (2002) Orixás: deuses Iorubás na África e no Novo Mundo. Salvador: Corrupio.
SANSI, Roger. “Fazer o santo”: dom, iniciação e historicidade nas religiões afrobrasileiras. In: Análise Social, vol. XLIV (1.º), 2009, p. 139-160.
MAUSS, Marcel e HUBERT, Henri. Ensaio sobre a natureza e a função do sacrifício. In: Ensaios de Sociologia, São Paulo, Editora Perspectiva, 1981.




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